Sobre a técnica

A recriminação, de natureza ideológica (e por que não de cunho emocional), mais ouvida por parte de quem desenvolve o trabalho figurativo sério, sob o rigor da excelência, é o slogan clássico “a técnica trava a liberdade criativa ou expressiva do espírito humano.

A tese subjacente é de que, quanto menos informação ou treinamento tiver, menos técnicas souber, mais espontânea será a obra, mais os processos internos e emocionais florescerão.

Contudo, analisando a questão mais de perto, é perceptível a contradição interna dessa máxima como ponto de partida. A técnica, entendida como instrumento ou meio de expressão, representa uma ferramenta importante no cotidiano artístico porque permite manipular a imagem dentro do processo prático. Por meio dela, podemos melhor traduzir o que desejamos expressar e assim materializar nossas intenções. Sob essa perspectiva, a técnica está a serviço da expressão – a técnica nunca se opõe à expressão. E ainda, se a técnica é um meio, uma ferramenta, ela não é sujeito. Como tal, não escolhe, não tem vontade própria e, portanto, não pode obstaculizar ou cercear ninguém.

Dizer que o indivíduo é “travado” pela técnica é afirmar que ele se torna objeto de algo inanimado que não tem vontade. Essa situação é, no mínimo, estranha. O paradoxo parece mais o reflexo da dificuldade da pessoa envolvida de encarar ou mesmo superar o desafio – que é enorme, diga-se de passagem – de transformar a técnica em seu aliado. Nunca vi alguém que domina plenamente a técnica maldizê-la ou desdenhá-la (pelo contrário, em geral, as críticas surgem daqueles que não a dominam). Se olharmos para os mestres, como diz Jonathan Brown, constataremos que os “grandes pintores foram invariavelmente grandes técnicos”.

De certa forma, convencionar a técnica (que é meio) como sujeito e o indivíduo praticante (que é sujeito) como vítima, serve mais como estratégia de subverter a ordem das relações na tentativa de criar uma cortina de fumaça por onde possa fugir sem que ninguém perceba. Por a culpa na técnica nos remete àquele famoso ditado reformulado de que “errar é humano, mas jogar a culpa no outro é mais humano ainda.” E nada melhor que achar um “bode expiatório” que não possa se defender ou revidar...

O mais coerente seria pensar e assumir que é a pessoa que se “trava” diante da técnica. É realmente doloroso lidar com o não-saber, o não-controle, mas tudo isso não é nada perto da dificuldade emocional de lidar com a frustração de saber racionalmente do que se trata e não conseguir aplicá-la intuitivamente na prática. Ou ainda, lidar com a autocrítica e a responsabilidade que surgem implacavelmente do conhecimento de causa que a técnica proporciona.

A mudança de postura exige a troca de critério: se no primeiro caso, o que mais importa é deixar tudo para lá para que o processo interior opere misticamente sobre as coisas, no segundo, o que conta é ter personalidade e maturidade suficientes de impor-se diante da técnica, firmar um compromisso consigo mesmo na difícil tarefa de se ver, reconhecer suas faltas, imperfeições e conduzir-se, de forma madura, segundo os princípios de disciplina, treino repetitivo e humildade.

O grande defeito da concepção do artista como “vítima da técnica” é que não elimina a falta de formação, basicamente porque descarta simplesmente a idéia e possibilidade do aprendizado. Meia dúzia de palavras ratifica a aceitação acrítica desse lugar passivo e aconchegante. Por parte do aprendiz, aceitar a frase pronta, apesar de muito sedutora, é assinar um atestado de incapacidade no lidar com o problema e, em última instância, representa um retrocesso, pois pode ser visto, nas palavras de Arnheim, como um “primitivismo artificial da pessoa que se recusa a entender como e por que trabalha.”

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